8 de dez. de 2017

O Estado de S. Paulo 26 de abril de 1985

Legião Urbana, rock e indagação

Filhos da revolução, Renato Russo e Marcelo Bonfá há muito tempo preferiram não silenciar. Corria o final da década de 70, quando estes quatro brasilienses, percebendo uma lacuna na vida cultural do Distrito Federal, decidiram movimentar as noites da cidade: "Própria para qualquer esporte, porque equipada com largas avenidas, parques e quadras, pecava pela ausência de alternativas musicais". A idéia foi criar uma banda. Uma não foram várias, um dia criadas, noutro desfeitas-"nossa atividade era 'bolar' os nomes"-, até o grupo definitivo, o Legião Urbana, principiante, de certa forma, mas elogiado pela crítica especializada.As primeiras experiencias, hoje lembradas com entusiasmo, verdadeiras aventuras pelos espaços brasiliense, frutificaram: o Legião Urbana está lançando o seu LP de estreia e ganha, para marcar a data, três espetaculos, hoje e amanhã, a partir das 23 horas, no Rádio Clube (avenida Pedroso de Moraes 1.036) e domingo, em matinê, na Pool (rua dos Pinheiros, 1.075).
Na opinião de Renato Russo, a trajetoria do grupo, bem como sua concepção, prende-se à formação de seus quatro integrantes e à própria condição de vida no Distrito Federal: "É lá onde tudo acontece, onde se tem acesso às informações, onde o intercâmbio com o Exterior é mais rápido, pela presença dos corpos diplomaticos". O primeiro grupo, batizaram de Aborto Elétrico, espécie de homenagem a uma menina que perdeu o filho quando foi agredida durante uma passeata. A patir daí, sempre ligados a Universidade de Brasília, atentos aos acontecimentos politicos, seus trabalhos chegavam aos pequenos publicos que tinham, marcados por uma reflexão crítica que até hoje confere ao Legião Urbana um lugar especial no Rock Brasileiro. "O Paralamas e o Barão Vermelho abriram caminho..." Eles dizem que berravam tudo o que tinham direito. Renato Russo lembra: "Tínhamos uma música assim: Nas favelas no Senado, sujeira pra todo lado/Ninguem respeita a constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação. Depois, vinha o refrão: Que país é Este! Que país é Este!"
Naquela época, saíam à procura de espaço para apresentar. Quando conseguiam-qualquer lugar valia-,distribuíam folhetos com as novas letras das musicas. Encontravam apoio entre os amigos que, como eles, não gostavam de discoteca. Agora, passados alguns anos, o grupo está surpreso com a reação dos públicos paulista e carioca. Na danceteria Mamão com Açucar e no Circo Voador, no Rio, os fãs não só apareceram como cantaram junto, excelente indicador para uma banda cuja as musicas ainda não fazem parte das programações das emissoras de rádio. Em São Paulo, a surpresa não foi menor. No programa de Fausto Silva, da TV Record, o público pedia músicas. Além disso, chamaram a atençaõ da imprensa. Certos de que para fazer rock não é preciso "cantar baby, baby", tambem seguros de suas tendencias para um trabalho mas cerebral, de questionamentos multiplos, não apenas politicos, eles reunem em seu primeiro LP do Rock experimental à balada, do reggae à "pauleira", mas advertem: "Não é new wave, não é heavy, não é punk, É Legião Urbana.
No show, eles vão mostrar todas as faixas do disco, exceto "Por Enquanto", impossivel de se reproduzir ao vivo-"falta o teclado"-além de algumas surpresas, como "Conexão Amazônica", composição cuja a letra, para ser liberada pela censura, há algum tempo atras, teve de ser alterada no trecho em que mencionava drogas, embora, segundo Russo, seja, na verdade, um alerta contra as drogas. As músicas que compoem o LP, da experimental "Soldados" a "O Reggae"-"um reggae wue ficou com um certo ar de núsica grega"-todas as foram selecionadas por eles mesmos-"o bom é que nos deram toda a liberdade"-, reunindo oa mas representativos trabalhos da banda. O resultado final, segundo Renato Rocha, superou todas as expectativas. Para Russo, nem tanto, mas Dado Villa-Lobos justifica a observação do companheiro: "A crítica é boa, mas a gente, como todo artista, está sempre insatisfeito". Eles querem agora tentar uma fusão entre vários gêneros. Russo está de "olho no chorinho".

29 de nov. de 2017

Jornal da Tarde 1 de abril de 1985

Rock de Brasília, político e existencial

O rock de Brasília começa a conquistar o seu espaço, com uma proposta que, já de início, o destaca da grande maioria dos grupos do eixo Rio-São Paulo. Isto é o que se confirma a partir do albun de estreia do quarteto Legião Urbana 9lançamento EMI-Odeon, produzido por José Emílio Rondeau), com um som cru e direto, próximo do rock pós-punk britânico. As plateias roqueiras que já conheciam o Legião Urbana atraves do sucesso de "Química", gravado pelo Paralamas do Sucesso, ou de suas apresentações ao vivo, podem agora comprovar a força do grupo também nos estudios. Ao contrário das produções que vem podando muito da identidade do rock-tupiniquim, este disco consegue captar e transmitir a essencia da banda do Planalto Central. Se o som traz a forte influencia do rock inglês, e do melhor, por sinal, nas suas letras o Legião Urbana traça um contundente perfil da juventude que cresceu sob a sombra do regime de 64. É o que se comprova na canção "Geração Coca-Cola", um dos destaques do album: "Quando nascemos fomos programados/A receber o que vocês nos empurraram/com os enlatados dos U.S.A., das 9 às 6/(...)/Somos os filhos da revolução/Somos burgueses sem religião/Nós somos o futuro da nação/Geração Coca-Cola" (Renato Russo).
Eles, no entanto, não ficam apenas no registro dos pesadelos de sua geração. Musicalmente, o grupo mostra que o rock tupiniquim ainda vai aprontar muita coisa. O guitarrista Dado Villa-Lobos aparece como uma das revelações no instrumento, com um toque ao mesmo tempo melódico, economico e supereficiente-confiram os sons de "O Reggae" ou "Baader-Meinhof Blues". A cozinha-Renato Rocha (baixo) e Marcelo Bonfá (bateria e percussão)-também não fica atrás, sem deixar cair o ritmo, injeta vigor aos vôos do grupo.Mas a figura central, e decisiva para personalidade do legião Urbana, é Renato Russo (vocal, letras,teclados e violão). Sua voz, empostada e forte, difere de tudo que rola no nosso rock e, num primeiro momento, lembra o velho jovem guardista Jerry Adriani. Felizmente o paralelo com a Jovem Guarda não vai além disso. Suas letras beiram em muitos momentos o niilismo, em outros investem contra o sistema opressivo, mas ele não abre mão também de uma autocritica de sua geração. "A Dança", por exemplo, onde questiona a juventude: "Você é tão moderno/Se acha tão moderno/Mas é igual a seus pais/É só questão de idade/Passando dessa fase/Tanto fez e tanto faz". Jé em "O Reggae", uma contudente crítica da sociedade: "Ainda me lembro aos tres anos de idade/O meu primeiro contato com as grades/O meu primeiro dia na escola/Como senti vontade de ir embora...".
Radicais, coerentes, os rapazes do Legião Urbana abrem uma nova frente para o rock brasileiro, a das posturas politica e existencial. Nem tudo é alienação no mundo do show biz, como pode ser comprovado nesse retrato da juventude, filha da revolução.

Antônio Carlos Miguel

24 de nov. de 2017

Jornal do Brasil 28 de fevereiro de 1985

O "ROCK" DESCE DO PLANALTO CENTRAL

URBANA LEGIO OMNIA VINCIT-A Legião Urbana Tudo Vence.

Assim mesmo, em latim, uma das maiores combativas bandas do Rock Brasil, a Legião Urbana, desce do Planalto Central para estreia num LP produzido por José Emilio Rondeau para a EMI.
Não foi um parto fácil. A virulência inadimplente da Legião assustou os executivos da gravadora e foi preciso muito esforço para que o LP chegasse finalmente às lojas. A Legião leva ao pé da letra o sentido original do rock perdido ao longo dos anos e revivido em 76 pelo movimento punk: Combat Rock ou Somos o Futuro: da nação.
A Legião é Dado Villa-Lobos (guitarras), que nada tem a ver com as músicas clássicas; Marcelo Bonfá (bateria), que nada tem a ver com bossa nova; Renato Russo (voz,letras e teclados), que nada tem a ver com a União Soviética e Renato Rocha (baixo), sólido como pedra.
Renato tem um dos melhores textos do Rock Brasil, ele trabalha em duas vertentes principais: a análise de relações pessoais indo fundo nas causas e encontros e desencontros e o enfoque político com uma linguagem panfletária e combativa que passa em revisão os efeitos de 20 anos de autoritarismo sobre as gerações que nasceram e cresceram nesse período.
Renato, é Manfredini, ex-jornalista, é figura de poeta de um núcleo de jovens cabeças reunidas em torno da Colina, um conjunto de apartamentos para professores da Universidade de Brasília onde nasceu, sob a batuta Renato e Marcelo, uma das primeiras bandas punks brasileiras, o Aborto Elétrico.
"Já me falaram muitas vezes que a voz do povo é a voz de Deus. Será que Deus é mudo?", panfletava Renato na época do aborto. Com os anos, o som evoluiu, nasceu a Legião, deixando para trás o punk e partindo em "busca de uma linguagem e estilo que aproxime o experimentalismo do pop sem cair no pasteurizado ou em soluções fáceis".A estética suja do punk foi, polida com inspiração nas bandas pós-punk inglesas e a Legião conseguiu fazer um disco sem qualquer solução sonora fácil.
Baixo e bateria estão sempre na frente segurando a base, o LP é todo marcado pelo som seco da caixa que José Emílio colocou na frente em todas as faixas, o trabalho de guitarra é um dos mais criativo sem rock nacional, colorindo as músicas com intervenções contidas, muitas vezes com efeitos, como em Soldados, onde a guitarra faz uma sirene ao som marcial da bateria enquanto Renato canta a historia a história de dois soldados que não queriam lutar e lembram com saudade das namoradas e o tempo em que era só brincadeira fingir ser soldado a tarde inteira.
Nas músicas que tratam de relações pessoais, Renato Russo nunca deixa de dar cutucadas nos fantasmas que assombram relações. Em Perdidos no Espaço ele fala da rotina, a velha demolidora de relacionamentos: "E a rotina crescia como planta e engolia a metade do caminho. E a mudança levou tempo, por ser tão veloz, enquanto estávamos a salvo. Ficamos suspensos, Perdidos no Espaço".
Em Será, que já toca nas FMs, as brigas, a dominação e os sentimentos negativos que sempre pintam: "Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você, não é me dominando assim que você vai me entender (...) Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação. Serão noites inteiras, talvez por medo da escuridão. Ficaremos acordados imaginando alguma solução para que esse nosso egoísmo não destrua nosso coração".
Baader Meinhof-Blues, não é um blues nem fala de terrorismo politico mas do terror social que acha "a violência fascinante, a justiça desafinada, tão humana e tão errada". "Já estou cheio de me sentir vazio, meu corpo é quente estou sentindo frio. Todo mundo sabe, ninguém quer mas saber, afinal amar ao próximo é tão
démodé".
O lado politico explode em Geração Coca-Cola, a promessa do troco pelo vazio cultural dos últimos 20 anos sintetizada no irônico refrão: "Somos filhos da Revolução, somos burgueses sem religião. Somos o futuro da nação, Geração Coca-Cola". O Reggae trata do mesmo assunto, compara a escola à prisão, os jornais da TV ensinam a roubar para vencer, a inocência violentada se pronuncia em "nada era como eu imaginava, nem as pessoas que eu tanto amava" e logo a reação cínica: "e daí? Se é mesmo assim, vou ver se tiro o melhor pra mim". Mas adiante indaga quantas crianças Deus já matou e fecha com versos exemplares: Beberam meu sangue não me deixam viver. Tem o meu destino pronto e não me deixam escolher. Pedem identidade pra depois me bater. Tiram todas as minhas armas, como posso me defender? Vocês venceram esta batalha, quanto a guerra vamos ver".
Quando se refere à juventude de Brasília, Renato Russo sempre fala dos garotões filhinhos de papai, os boyzinhos, seu alvo na faixa A Dança onde ridiculariza o machismo, o culto ao vazio, a fuga nas drogas: "Você não tem ideias para acompanhar a moda, tratando as meninas como se fossem lixo. Ou então espécie rara só a você pertence, ou então espécie rara que é só um objeto pra usar e jogar fora depois de ter prazer. Você é tão moderno se acha tão moderno mas é igual a seus pais. É só questão de idade, passando dessa fase, você vai ser um velho a mais".
Ainda é Cedo, uma das músicas mas fortes do LP, fala de um casal que se apega a solidão do outro até o rompimento no meio de uma discussão onde "falamos o que não devia nunca ser dito por ninguém" e tradicional "vamos dar um tempo, um dia a gente se vê". Aí ele responde "ainda é cedo, cedo, cedo".
Para quem gosta de um baladão mas tradicional com bateria eletrônica e camadas de teclados, a Legião serve Por Enquanto mais uma vez falando em ilusões: " Se lembra quanto a gente chegou um dia acreditar que tudo era pra sempre sem saber que o pra sempre sempre acaba".
outro destaque do disco é a produção visual, toda em preto e branco com altos relevos que mostram edifício do Congresso, um índio e uma tampa de lata de cerveja. No encarte, motivos históricos da antiguidade, pinturas de caverna e desenhos de Marcelo Bonfá e as letras.
O disco da Legião soma a uma lista de LP que esboçaram rumos e representaram um avanço na busca de uma forma brasileira de fazer rock: As Aventuras da Blitz, Cena de Cinema (Lobão), Essa Tal de Gang 90 e Absurdetes, O Passo do Lui ( Paralamas do Sucesso), Ronaldo Foi Pra Guerra (Ronaldos), Tempos Modernos (Lulu Santos) e Maior Abandonado (Barão Vermelho).
Por tudo isso o disco da Legião é imperdível e dá novos direcionamentos ao Rock Brasil, o movimento mais rico em tendências de todos que já surgiram na Música Popular Brasileira.

Jamari França