24 de nov. de 2017

Jornal do Brasil 28 de fevereiro de 1985

O "ROCK" DESCE DO PLANALTO CENTRAL

URBANA LEGIO OMNIA VINCIT-A Legião Urbana Tudo Vence.

Assim mesmo, em latim, uma das maiores combativas bandas do Rock Brasil, a Legião Urbana, desce do Planalto Central para estreia num LP produzido por José Emilio Rondeau para a EMI.
Não foi um parto fácil. A virulência inadimplente da Legião assustou os executivos da gravadora e foi preciso muito esforço para que o LP chegasse finalmente às lojas. A Legião leva ao pé da letra o sentido original do rock perdido ao longo dos anos e revivido em 76 pelo movimento punk: Combat Rock ou Somos o Futuro: da nação.
A Legião é Dado Villa-Lobos (guitarras), que nada tem a ver com as músicas clássicas; Marcelo Bonfá (bateria), que nada tem a ver com bossa nova; Renato Russo (voz,letras e teclados), que nada tem a ver com a União Soviética e Renato Rocha (baixo), sólido como pedra.
Renato tem um dos melhores textos do Rock Brasil, ele trabalha em duas vertentes principais: a análise de relações pessoais indo fundo nas causas e encontros e desencontros e o enfoque político com uma linguagem panfletária e combativa que passa em revisão os efeitos de 20 anos de autoritarismo sobre as gerações que nasceram e cresceram nesse período.
Renato, é Manfredini, ex-jornalista, é figura de poeta de um núcleo de jovens cabeças reunidas em torno da Colina, um conjunto de apartamentos para professores da Universidade de Brasília onde nasceu, sob a batuta Renato e Marcelo, uma das primeiras bandas punks brasileiras, o Aborto Elétrico.
"Já me falaram muitas vezes que a voz do povo é a voz de Deus. Será que Deus é mudo?", panfletava Renato na época do aborto. Com os anos, o som evoluiu, nasceu a Legião, deixando para trás o punk e partindo em "busca de uma linguagem e estilo que aproxime o experimentalismo do pop sem cair no pasteurizado ou em soluções fáceis".A estética suja do punk foi, polida com inspiração nas bandas pós-punk inglesas e a Legião conseguiu fazer um disco sem qualquer solução sonora fácil.
Baixo e bateria estão sempre na frente segurando a base, o LP é todo marcado pelo som seco da caixa que José Emílio colocou na frente em todas as faixas, o trabalho de guitarra é um dos mais criativo sem rock nacional, colorindo as músicas com intervenções contidas, muitas vezes com efeitos, como em Soldados, onde a guitarra faz uma sirene ao som marcial da bateria enquanto Renato canta a historia a história de dois soldados que não queriam lutar e lembram com saudade das namoradas e o tempo em que era só brincadeira fingir ser soldado a tarde inteira.
Nas músicas que tratam de relações pessoais, Renato Russo nunca deixa de dar cutucadas nos fantasmas que assombram relações. Em Perdidos no Espaço ele fala da rotina, a velha demolidora de relacionamentos: "E a rotina crescia como planta e engolia a metade do caminho. E a mudança levou tempo, por ser tão veloz, enquanto estávamos a salvo. Ficamos suspensos, Perdidos no Espaço".
Em Será, que já toca nas FMs, as brigas, a dominação e os sentimentos negativos que sempre pintam: "Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você, não é me dominando assim que você vai me entender (...) Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação. Serão noites inteiras, talvez por medo da escuridão. Ficaremos acordados imaginando alguma solução para que esse nosso egoísmo não destrua nosso coração".
Baader Meinhof-Blues, não é um blues nem fala de terrorismo politico mas do terror social que acha "a violência fascinante, a justiça desafinada, tão humana e tão errada". "Já estou cheio de me sentir vazio, meu corpo é quente estou sentindo frio. Todo mundo sabe, ninguém quer mas saber, afinal amar ao próximo é tão
démodé".
O lado politico explode em Geração Coca-Cola, a promessa do troco pelo vazio cultural dos últimos 20 anos sintetizada no irônico refrão: "Somos filhos da Revolução, somos burgueses sem religião. Somos o futuro da nação, Geração Coca-Cola". O Reggae trata do mesmo assunto, compara a escola à prisão, os jornais da TV ensinam a roubar para vencer, a inocência violentada se pronuncia em "nada era como eu imaginava, nem as pessoas que eu tanto amava" e logo a reação cínica: "e daí? Se é mesmo assim, vou ver se tiro o melhor pra mim". Mas adiante indaga quantas crianças Deus já matou e fecha com versos exemplares: Beberam meu sangue não me deixam viver. Tem o meu destino pronto e não me deixam escolher. Pedem identidade pra depois me bater. Tiram todas as minhas armas, como posso me defender? Vocês venceram esta batalha, quanto a guerra vamos ver".
Quando se refere à juventude de Brasília, Renato Russo sempre fala dos garotões filhinhos de papai, os boyzinhos, seu alvo na faixa A Dança onde ridiculariza o machismo, o culto ao vazio, a fuga nas drogas: "Você não tem ideias para acompanhar a moda, tratando as meninas como se fossem lixo. Ou então espécie rara só a você pertence, ou então espécie rara que é só um objeto pra usar e jogar fora depois de ter prazer. Você é tão moderno se acha tão moderno mas é igual a seus pais. É só questão de idade, passando dessa fase, você vai ser um velho a mais".
Ainda é Cedo, uma das músicas mas fortes do LP, fala de um casal que se apega a solidão do outro até o rompimento no meio de uma discussão onde "falamos o que não devia nunca ser dito por ninguém" e tradicional "vamos dar um tempo, um dia a gente se vê". Aí ele responde "ainda é cedo, cedo, cedo".
Para quem gosta de um baladão mas tradicional com bateria eletrônica e camadas de teclados, a Legião serve Por Enquanto mais uma vez falando em ilusões: " Se lembra quanto a gente chegou um dia acreditar que tudo era pra sempre sem saber que o pra sempre sempre acaba".
outro destaque do disco é a produção visual, toda em preto e branco com altos relevos que mostram edifício do Congresso, um índio e uma tampa de lata de cerveja. No encarte, motivos históricos da antiguidade, pinturas de caverna e desenhos de Marcelo Bonfá e as letras.
O disco da Legião soma a uma lista de LP que esboçaram rumos e representaram um avanço na busca de uma forma brasileira de fazer rock: As Aventuras da Blitz, Cena de Cinema (Lobão), Essa Tal de Gang 90 e Absurdetes, O Passo do Lui ( Paralamas do Sucesso), Ronaldo Foi Pra Guerra (Ronaldos), Tempos Modernos (Lulu Santos) e Maior Abandonado (Barão Vermelho).
Por tudo isso o disco da Legião é imperdível e dá novos direcionamentos ao Rock Brasil, o movimento mais rico em tendências de todos que já surgiram na Música Popular Brasileira.

Jamari França

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